- Senta-te! Vou-me casar!

Subi a escada estreita e bafienta do prédio, carregada com uma pilha de livros e cadernos, que pedi emprestados e toquei na campainha com o cotovelo.
A pequenina abriu a porta, com os seus cabelitos longos e encarapinhados, atados com uns ganchos coloridos.
- Bom dia, senhorita Shakira (é assim que lhe chamo por imitar a artista como ninguém.) – A mama está?
- Tá. – respondeu enquanto tentava esticar-se para me dar um beijo.
Virou-me as costa e foi sentar-se frente à televisão.
Do outro lado da casa a minha amiga, gritou:
- Entra e senta-te.
- Estou com pressa, Ju! Onde queres que ponha os livros?
- Senta-te. – gritou de novo.
- Não dá!
- Eh pá, senta-te! Senta-te…
Fez uma pausa e continuou:
- Senta-te! Vou-me casar!
Pousei os livros no chão, ali mesmo, e sentei-me no tapete da sala, ainda aparvalhada e muda, a ver os bonecos, na Tv, com a Zayra.
...
Passados três meses, no dia do aniversário da filhota, lá estava eu no casamento.
E só fui mesmo porque se arriscam a ser um dos casais mais humildes e simples que conheço.
Ao vê-la subir a escada de braço dado com o pai, que viajou de Cuba, só para a levar ao altar, recordei a conversa daquele dia.

- Eh, pá… Casar? Isso soa-me a… Estranhoooo?
- Porquê? Estranho? Não vivemos juntos há 7 anos? Não temos uma filha? Não estará na hora de oficializar o amor?
Fiquei um bocadinho atarantada, mas os argumentos eram bons!
- Desculpa lá… Mas… A família do teu marido não é Muçulmana? Vais abandonar aquilo em que acreditas? Vais converter-te?
Ela estendeu-me a mão com o anel e acrescentou:
- É! Vou converter-me se tiver de ser o preço a pagar... Vês? Sou a mais recente noiva convertida!
inspirei fundo, pensativa.
- Lara, a minha religião é ser feliz! Tanto me faz que lhe chamem uma coisa ou outra...

Ora pois muito bem… Do cimo da escada olho para ela, a deslizar sobre o tapete vermelho, e penso:

“Quem diria?...
Realmente o AMOR dá muitas voltas! o AMOR Tem mil caras. Corre o mundo vezes sem fim, em mil vidas, sob mil formas... apenas para juntar dois seres que, inevitavelmente, foram, são e serão um do outro..."

A noiva… Uma Cubana, ex católica, recém Muçulmana, praticante do Amor, um crânio em ciências e questões de medicina, a tirar um curso de psicologia aos 30 anos, a exercer a profissão de esteticista, para pagar as contas e educar um filho. Uma fugitiva do seu país… uma lutadora… uma emigrante… Mãe, filha, esposa, dona de casa… amiga… estudante… pobre… simples… altruísta…sempre sorridente...

O noivo... Moçambicano de nascença, mouro nas origens e nos traços, ferveroso seguidor de uma mãe ferverosamente muçulmana... Português, por acidente de percurso. Parco em palavras, doce nas bricadeiras com a filha. Terno no sorriso e simples no calor genuido de um abraço... Ibraim, é talvez dos Homens mais fortes que conheço! No entanto, ao olhá-lo tem um ar tão frágil quanto uma pena...

No altar ele espera nervoso, há duas horas, e a impaciência começa a deformar-lhe a expressão do rosto!

Sorrio ao pensar que ao fim de 7 anos, de uma relação cheia de dificuldades e privações, encontraram em si amor suficiente para enfrentar dois mundos tão diferentes!

É que é um facto que nem todas as religiões se aceitam mutuamente…
Nem todas as tradições são justas para com os apaixonados…
Nem todos os amores são livres!
Nem todas as familias são como a minha!...
...
E a festa foi linda. Claro!
E chorei, como sempre. Claro!
E fui a primeira a chegar e a primeira a sair!
(Raramente me atraso e não fico em lado algum para fazer o “jeito”.)
E, coisa improvavel, onde não conhecia ninguém, reencontrei um casal amigo... A Raquel e o Ivo!

E foi uma tarde muito especial.
Vou para casa com o coração cheio de dúvidas!
(O que é muitoooooo bom!)

Ainda andei um bocado junto ao mar, a ver o mais maravilhoso swell, de que me lembro desde o ano passado… A ver um delicioso por-do sol...
Dei por mim a sonhar com o que poderia ter sido e não foi!...
Já fui pedida em casamento uma vez.
Estava muito apaixonada.
Cegamente apaixonada.
Pelo Homem-socialmente-perfeito.
E se me pergunto porque não o pude aceitar… (dizer "não", exigiu mais coragem que dizer um "sim".), respondo-me que:
“O amor, sozinho, não serve uma união!”
Só com ele não há casamento que resista!
O Amor chega mesmo a ser o motivo pelo qual as pessoas se separam… chega a ser o motivo porque se odeiam… se vingam… se infernizam!

De nada adianta amar, se só o amor existe!
O amor é apenas um dos ingredientes do AMAR…

Sem respeito, sem sacrifício, sem humildade, sem querer fazer a vida do outro mais rica, mais feliz, mais completa…Sem vontade de partilhar… sem vontade de viver as privações e as felicidades a meias… o amor não chega!
E se levarmos o assunto: casamento, ao seu lado estritamente contratual e legal, também não me parece que assinar um papel chegue. Não há contrato algum que resista se as duas partes não tiverem igualmente empenhadas em cumpri-lo!

Olho para ambos no altar e penso:
7 anos para se conhecerem!
Para aprenderem a amar-se!
7 anos para sofrer, para construir, para recomeçar, para discutir…

E quando nada mais parece ser surpresa entre dois seres humanos que partilham uma rotina, uma mesa, uma cama, várias responsabilidades, uma filha, uma religião diferente…
Então brota a vontade da entrega, renasce a paixão e motiva-se esta união!

Seja lá qual for a religiãoão em que casam… parece-me que estes dois re-inventaram uma nova devoção:
Um casamento Muçulmano/cristão-de alma-corpo-e-coração.

E só podem (continuar a) ser muito felizes!

Na alegria e na tristeza... na saúde e na doença...